Eu não sei que tenho em Évora


Templo Romano, Novembro de 1995

Foi a minha primeira viagem verdadeiramente turística, isto é, fora do âmbito dos passeios e férias familiares, a primeira vez que o meu pai consentiu (a custo) que eu me afastasse do alcance da protecção parental. Foi a minha primeira visita de estudo, a que na época chamávamos excursão, andava eu na 4ª classe, em 1978.
Foi ainda a primeira vez que fiz uma viagem longa de autocarro sem enjoar, que comprei souvenirs para oferecer e que fiz um diário de viagem. Foi numa agenda de bolso que o meu pai me tinha dado, com uma capa castanha, publicidade à Mabor, no interior, e muita informação ilustrada sobre o código de estrada, os sinais de trânsito, pneus e distâncias. Não sei o que foi feito dela; recordo-me de a ter visto durante anos, sempre que fazia arrumações.
Lembro-me da letra infantil e do relato minucioso da Capela dos Ossos. Logo à entrada, a inscrição dantesca: «Nós ossos que aqui estamos pelos vossos esperamos» -- foi o suficiente para a Cristina, uma miúda muito morena e tímida, se ter recusado a entrar (e a ouvir as nossas descrições à saída). Eu anotei tudo: as caveiras, a penumbra, os esqueletos de história sinistra. E a Igreja de São Francisco, a Praça do Giraldo, o Templo de Diana, o centro histórico (classificado pela UNESCO, em 1986), as explicações da Senhora Dona Maria de Fátima e os comentários dos meninos.


Vista da cabeceira da Igreja de São Francisco, Abril de 2008

A Senhora Dona Maria de Fátima era a professora jovem, meio hippie, que nos veio libertar da repressão da arcaica Senhora Dona Maria Amélia, que nos chamava ursas (às vezes esquecia-se de que, em 1975, tinham transferido alguns meninos para a Escola Feminina nº 7, que então passou a chamar-se Escola Primária nº 1 da Mina), borboletas, quando estava contente, que nos dava uma e só uma valente reguada quando nos portávamos mal ou nos distraíamos, que nunca nos ensinou a cantar canções de Natal (só O meu chapéu tem três bicos e Eu perdi o dó da minha viola), nem a fazer prendas para o Dia da Mãe, mas que não descansou enquanto não nos pôs a ler, a escrever e a fazer contas como deve ser, para o que chegava a usar momentos de acompanhamento personalizado.
A Senhora Dona Maria de Fátima foi uma lufada de ar fresco, com o penteado à Elis Regina, as maxi-saias e as túnicas, as novas metodologias, o picotado, o recorte de papel e as pinturas murais que coloriram a escola. Eu liderei um grupo que pintou uma versão feminina dos Pigs in Space, dos Marretas, que insistia em emergir das camadas de tinta pastel com que anos mais tarde tentaram devolver algum decoro à escola -- só nos conseguiram calar quando demoliram as salas de alvenaria para instalarem uns absurdos contentores. Não usava a régua, mas teve de gritar muito, para conquistar o nosso respeito (ou, pelo menos, a atenção). Porém, alargou-nos os horizontes, dos subúrbios até aos limites fronteiriços, e levou-nos, na nossa primeira excursão, a Évora.


Claustro do Colégio do Espírito Santo (Universidade de Évora), Abril de 2008

Posteriormente, voltei a Évora diversas vezes, em trabalho ou passeio, mas sem nunca me deter muito. É a sina do que nos está perto. No mês passado fui lá novamente, em trabalho e de fugida. Ainda tirei três ou quatro fotos, já no caminho de regresso, depois do que, vasculhando o meu fundo arquivístico, encontrei mais algumas, para juntar às mais recentes.


Cromeleque dos Almendres, 1998/1999

1 comentário:

Susana Rodrigues disse...

Hehehe, em 78 nascia eu :)
Mas também posso partilhar histórias da Dona Lígia, professora "retornada" que tratava as crianças africanas recém-chegadas por "os pretos", que usava a régua de madeira com mestria, que também nos ensinava "o meu chapéu tem três bicos" e "eu perdi o dó da minha viola", que punha as crianças recentemente convertidas para Testemunhas de Jeová sentadas do lado de fora da sala enquanto dava as aulas de religião e moral (porque eles não tinham moral para lá estar) e que, na verdade, me deu uma excelente preparação para o ciclo preparatório...
Mas confesso, não tenho saudades porque ela fazia-me tremer dos pés à cabeça.